Wednesday, February 4, 2015

Liquidez

Deixou o corpo e fundiu-se com a gravidade.

Em queda um mar de andorinhas formava um tapete-constelação.

Sentiu que ia sufocar e alçou fôlego. Vento que em sua boca soprou esperança.

A onda era fértil e guardava algas peixes pequenos e redenção.

Redenção é uma espécie de planta aquática que te liberta das insignificâncias. Como observar o louva-Deus em oração. 

Das essências da ciência, a gravidade tem um efeito entorpecente.

E teve sobre o seu corpo o espírito das estrelas. Ópio dos sentidos.

Saturday, August 2, 2014

Clemência

Tinham um ar frio e calculista, as imagens mentais. Calabouço dos sentimentos sombrios de toda a gente, de toda a humanidade. E a sondavam feito feras dia e noite, noite e dia. Ela, Clemência, tentava espantá-las com erva de mulher braba, pistola e lança. Chegou a benzer a cama em véspera de noite de sonho que se registra, trancou-se no armário mais remoto, no espaço mais recôndito da sua existência e ainda assim conseguia sentir o bafo frio e horripilante das feras imaginárias. Clemência tinha uma amiga estelar. Coisa d'outro mundo. E as duas se correspondiam por cartas, mensagens, dobraduras. Uma alimentando a fome da outra e ensinando para a outra aquilo que escola nenhuma ensina, aquilo que é instintivo e se perdeu. Então lembrou-se de sagrado ensinamento. Lembrou-se e ficou a lembrar. Puxou a cadeira pro meio do mato, deitou a sola dos pés na terra e deixou escapar subterfúgios. E como se esforçava... queria chegar até as estrelas com o sopro de uma criança de três anos. Queria demais. E cada vez que fechava os olhos se via ali tentando colocar pra fora, pelo ventre, boca e poros, um leão sem a destreza de um encantador de animais selvagens, desviando o olhar do ponto de partida, daquela primeira respiração inaugural. Estava presente, porém tão quebrada. Clemência aconteceu desse jeito... sem as rédeas e os retalhos da sua própria vida. Perdeu-se e agora tudo parecia custoso sem um fim que se mede. Custoso e engessado.

Clemência corre dentro da mulher que vive em cada uma de nós.

Wednesday, March 21, 2012

A aflição de Anatéia e Jesus (draft #1)

Na sala da casa acontecia. Na sala da casa a briga era validada e doía. Tanto de um tanto que a tinta da parede chegava a rachar. De pequeno, da espessura de uma teia, aumentando gravemente até cair no chão e virar pó. A palavra final tinha cheiro de chumbo. Envenenava. Anatéia não tomava banho há dois dias porque achava que não tinha água quente e esquentar em chaleira foi coisa que jurou parar de fazer desde a vinda pro município. Ela nem sequer provou ligar o chuveiro instalado no cubículo que Jesus levantou no verão passado. Cismou que era e foi depois que viu o carro da companhia de água na casa da vizinha da frente -- porque ela generalizava. Não havia situação ou acontecimento isolado. Tudo fazia parte de um plano maior. O conhecimento de hoje, amanhã. Pro bem ou pro mal. Chegava a limitar. E o mal era a falta de banho naquele calor molesto. Varreu então a poeira que deitada no chão da sala vinha mesclada: branco e verde água, ás vezes escuro, velho. Sendo a última cor a pintura antiga da casa, de antes da mudança. De outros senões. E enquanto varria pensava nas palavras de Jesus antes de sair batendo portas. "Você tá tapando o sol com a peneira, mulher. E uma peneira bem grande." Eram duas as verdades. A dele e a dela, mais a dele por causa da transparência dos sentimentos em relação à ela. Anatéia era dura, calosa mesmo até nas feições e sofria de obstrução do fígado. A cruz dela era maior e só havia lugar para uma na casa. Quando Jesus voltou coisa de uma hora depois, encontrou a casa vazia. O vazio geral: ele e a imensidão de um ar parado, de uma fissura suspensa. Se ela se foi, se voltou para o cafundó? Se saiu a bater pernas pro mercado? Sentou-se no banco de madeira que dava para os fundos e olhou. Olhou até enxergar os raios de sol comerem a terra. Estava ficando preocupado, marcando o relógio com pesar. As feridas na palma da mão coçavam há séculos, sem fim. Precisava de mais pomada e da mulher. 

Thursday, September 15, 2011

Aquidauana

O avô espalhou pelo chão da sala discos de memória e afeto. Regressar à infancia tem gosto de sertão. Boca da terra vermelha.

Thursday, May 5, 2011

Vitral

Pensamentos atrofiados que carrego no bolso.


( 718 - 404 - 1374 telefone público em frente ao salão da Carmem)

"Estou tentando descrevê-lo com a minha foto na mão. Eu sei. Não ... escuta, somos muito parecidos", insistiu Eva. "O quê? Você não está me escutando? Tem um auto-falante fantasiado de alter ego dizendo que você devia agir de forma mais natural?".

( 212 - 506 - 7721 telefone público da capela da Principal com a São Benedito)

"Soube que ele está vendendo barras de chocolate no céu. Não, não ... me disseram que está tudo bem, mas que as nuvens são duras e ásperas. Qualquer coisa sobre um condensamento mundano e uma placa que diz: não pise chão molhado. O suicídio do coroinha?", perguntou surpresa Doroteia.

( 718 - 303 - 9045 telefone público qualquer na esquina do Nosso Cinema)

"Repito insistentemente que a exposição Homem-Máquina aconteceu em 2002 ... acho que em São Paulo. Escutou? ... Brasil? Foi, foi ... Se ela sobreviveu? Bem, foi traumático, havia um filme japonês The Iron Man ou algo assim, mas que no fundo era sobre a nossa sociedade. Sabe como é, quando caem as máscaras: demência.

Porque de perto todos parecem iguais.

Desmemoriado numa segunda-feira, dia 10 de setembro de 2007

Thursday, April 28, 2011

Vida que segue

Vendo fiado:

Solidão - a vista do alto do meu superego. 

Medo - do desconhecido que é feito mar aberto. 

Tristeza - produz um eco que não cabe nas cavidades corpóreas. 

Vergonha - uma antena com interferência. A mulher precisa gritar com mais elegância.

Derrota - desejo bifurcado. Tenho algumas, dão que nem praga. 

Tuesday, March 22, 2011

O destino entres as pílulas e os cavalos alados

A casa vazia

Deixou o bilhete escorrer e entregou o corpo aos desejos possíveis, encostando-se na parede mais próxima em estado de euforia e suspensão. Porque cinco minutos são vinte não escutou a banheira transbordar. A água levando-a mais pra dentro de si mesma. 

Um quarto para dois

Carregou-a pra dentro e fechou as janelas que logo começaram a transpirar. Há desejos aleatórios jogados no chão que ele tenta resgatar com cuidado. O corpo dela sobre a colcha os aquece e liberta de qualquer tensão. De todos os caminhos a boca é a desculpa para amar. 

E a estrada, sempre

Jogaram a moeda pro alto e o resultado trincou o lábio com força. Então partiu, sentindo-se prisioneiro de si mesmo. O corpo deslizando pela parede feito chuva fina e o balão vermelho no céu deslocando-se ao encontro do carro. Desejos tomam o rumo dos
ventos incertos. A marca do pneu é quase que uma cicatriz no peito.

Friday, March 18, 2011

A maçã dentro do armário

No desistir da tristeza, os três tipos de liberdade. Entre a morte pequena e a maior. Entre a verdade inevitável que paira sobre a ponte e o crepúsculo alveolar. Pendente. E tudo aquilo que ela não consegue entender: a infância reminiscente. Árvores ocas para um eu efetivo. Se couber, os sonhos.

Thursday, January 13, 2011

Corduroy road

E se tudo for verdade ela vai morrer e ele não vai ver?
Lá vai a minha arma.
Bateu a porta com força e saiu com pressa em movimentos que faziam a casa tremer.
Havia um buraco no chão da calçada que não viu com a cor da noite. Não pode ser! O cavalo negro alado. Ficou presa no orifício com as mãos para fora e o chão que era frio. E a brisa leve e o chão que era frio. Ela tentou gritar mas havia um esquilo que olhava com olhos de gato. Restos de mentiras que costuramos para dentro atraente. Algodão.
Lá vai direto para o céu. Morrer é leve de apenas um gemido, ai.
Eu não acredito que a conheci. Coloquei a cabeça pela janela e não vi mais o jeans corduroy que costumava contornar a esquina. No fogão, Campbell esquentava maravilhas e fervia. Tão vaidosamente quente.
Sentou-se e começou a escrever uma carta para ela. Lembrou-se da sopa que havia para o jantar e a colocou no prato sem muito cuidado queimando o polegar. E se eu for atrás, será que consigo alcançá-la na plataforma?
Ela é tão estranha e tão dela. Da noite que não cabe no quarto.
Fingiu que sonhou com pessoas iconográficas que carregavam pixels nas mãos, saltando juntas e firmes sobre pequenas poças de água computadorizada deixando escapar corações pela boca.
O carro de bombeiros fechou a rua e removeu o corpo para fora do buraco. Num instante de muito barulho, onomatopéias corriam pela rua e ventavam. E ele não escutou? Rá! Era tarde e os vizinhos olhavam para fora com as luzes apagadas. Vergonha que tenta imitar o que significa.
E ele saltava cada vez mais alto e olhava para a carta que estava tão fria, e para a sua cama e a lua com fibras verticais.

(Publicado originalmente em setembro de 2007.)

Saturday, January 8, 2011

Esperando chover

No caminhãozinho cheio de barro um pedaço de goiaba e um soldado de plástico. O menino mal andava com o bolso cheio de chumbinho que ele pegou escondido na oficina do avô. Às vezes limpava a goiaba na blusa, às vezes não, conforme o gosto. Ara, se a mãe visse. Era um fim de dia rezado. Já rápido vinha o carro levá-lo, e o acabou que encompassava assistir ao avô trabalhar em silêncio fazendo rodas de carreta. Mas se chovesse era como se colocassem rédeas no acertado das horas e ele tinha até o dia novo na casa dos avós. Inté a chuva passar e o barro secar e criar rastros e rugas no chão, machucando o pé de quem anda descalço, sem ferradura. Zaz no galope da vassoura que Nana procurou a tarde toda. "Estou fazendo desuso, Nana", dizia ele com a boca cheia de goiaba e de boa vontade. Menino não gostava do pai que vinha vindo e, visto que a chuva havia empacado numa nuvem muito sem cumulo, molhou o rosto com água, fazendo uns pingos na blusa e na bermuda. O vô buscou na gaveta um par de roupa velha do ano passado e resmungou "deixa o seu pai te pegar molhado", mascando fumo. E ele virava o corpo pra lá e pra ca, bem moleza. Saiu correndo quando o carro chegou e Nana teve que buscá-lo detrás do pé de jaca fedido e mais gostoso do mundo. Uma catedral de coisas passou na cabeça do menino. Foi arrastando com o chinelinho de couro fazendo barulho e chispando com o chão. Nana sussurrou no ouvido que era só guardar os temores num embrulho que o sonho amaciava. Ele olhou e acenou uma vez com o carro já ligado.